quinta-feira, 24 de abril de 2014

Sobre deusas e adeuses



Não é como se você
cuspisse marimbondos,
escarrasse na minha cara
e fosse embora
(madrugada a fora),
deitando-se em meio
à qualquer avenida
enquanto espera
                                um último beijo.

Ou que você surgisse
na porta de casa,
seu corpo, sua alma,
seu sorriso de deusa
(pobre de espírito),
e me pedisse um mimo
em troca do seu
                              veneno divino.

Nem aconteceu da vida parar
pra gente poder se dizer adeus
(no meio da rua, a noite veloz),
ou de você ameaçar se matar
e ir embora,
                      seus olhos sujos
                      sua boca toda borrada de batom.

Não ficamos largados
em meio ao silêncio
(e nunca tivemos segredos).
Torcemos o pano,
mudamos de planos
e houve,
               mas não houve medo.
É que deusas e adeuses
me escorrem

                        por entre os dedos.

sexta-feira, 28 de março de 2014

Uma dose infinita de gim.

Mariosito Rodriguéz y
Rosa de Montalvino
eram amantes de longa data,
acostumados um à presença
do outro, aos defeitos magros
do outro, ao suor, ao medo
que eles nutriam um do outro.
Mas naquele dia não podiam
mais com nada.
Exausto, Mariosito dijo a Rosa:
-Diosa, te voy a matar.
La rosa se puso a llorar
y gritó a Mariosito, pero no le salía la voz.
Ele se deixou cair no chão,
as duas mãos postas sobre o rosto,
o pulmão se contraindo no choro.
Ela, sentada na cama, os cotovelos
sobre as coxas,
as duas mãos postas sobre o rosto,
o pulmão se contraindo no choro.
Y Rosa habló:
-Pues, mata-me. No puedo con más nada.
Mario, me voy, me tengo que ir.
No puedo, Mario, no puedo, amor mío,
con más nada.  
Mas ela parou no meio da escada
ao olhar pra trás e vê-lo estendido no chão
mais morto, sem cor, sem vida
do que se ele estivesse, realmente,
morto.
Ela foi à cozinha e preparou duas doses de gim,
subiu as escadas e o pegou pelas mãos,
foi à janela, deixou as doses no parapeito
e depois, afogou-o em seu peito.

Levantaram-se, o corpo ainda quente,
suado, cheio de medos, de arrepios,
de sensações intermitentes.
Enrolaram-se em um cobertor,
seguraram a dose de gim e
sentaram-se sobre o parapeito,
dessa vez, ela deitou-se em seu peito.
- Rosa, qué haremos ahora?
-Pués, morir, Mariosito, morir,
amor mío.
Os dois se olharam e entenderam
o que já estava escrito nas páginas
inimagináveis.
Verteram o gim como um néctar de alma,
se abraçaram e se deixaram voar.
Os dois corpos nus,
cobertos um pelo outro
amanheceram inertes e desesperados
sobre a grama do jardim.
Eu olhei para as câmeras e só pude sair pensando

en cómo la vida és una dosis infinita de gin.

quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

Poema



1#
Sendo o Poeta animal em extinção,
decido assim e sem mais – numa referência mítica
não sei se ao Édson, se ao Pelé (porque não sei
muito bem qual dos dois começou com essa história
de se referir ao nome pela profissão, ou
à profissão pelo nome e a verdade é que fica difícil
escrever poemas com o telefone tocando ou o
celular apitando) – re-ferir-me a mim mesmo como Poeta.

2#
Poeta que é Poeta quando se mistura aos seres-humanos
da rua
finge-se de humano, finge ter todos os sentidos naturais
a todos os seres-humanos, tais quais: visão, olfato, paladar, audição, tato (e o Google, sentido inventando pelo ser-humano que se revelou utilíssimo ao Poeta)
é até engraçando, ver um Poeta numa mesa de bar fingindo escutar os barulhos do mundo
enquanto pensa em qualquer coisa e não concorda com ninguém.
(é justo, tudo muito justo, pois os seres-humanos também fingem os sentidos dos Poetas)

Ouve-se falar de amor em qualquer esquina.

3#
Poetas só tateiam na transa
só escutam na música
não sentem gosto qualquer
os humanos nomeiam seus cheiros como sentimentos:
Poetas só enxergam do alto,
Dito isto, passemos à Poesia...

4#

O poeta arma o baseado,
dá uma talagada de álcool,
e enxerga a cidade, do alto:

De repente está andando, descendo por umas ruas
sente o cheiro e lembra de tudo que já viveu por ali, naquelas calçadas dessa cidade
e costuma se lembrar de todos esses lugares, o Poeta tem memória fraquíssima para pontos da cidade e nomes de rua, associando-os à mulheres e se lembra destas – mas também dos lugares, não se engane, é uma coisa só – associando-as aos números de ônibus.
Apaixonou-se perdidamente pelo 8108, mas passou
Corou diversas vezes no 4106, não cora mais
Sentiu preguiça, náusea e algum amor no 5508 e no 1502
(hoje em dia é possível ver o Poeta – sem fazer poesia alguma – cansado no 2004)

E, ás vezes, o poeta se lembra do nome da cidade em que nasceu,
apesar de não se considerar filho de nada, nem de lugar nenhum,
relembra um flerte na porta daquela bar que hoje é loja de roupas infantis
e segue por aí, relembra-se de qualquer dia desses se aboletar no 4111
e visitar todas as partes feias da Cidade Feia e, aproveitando a vista, a paisagem
se lembrar de alguns de seus itinerários quando tinha o quê? Uns 14, 13 anos?
o poeta se aboleta, agora, na própria alma e revive madrugadas passadas em transe
ou dentro de um copinho de cerveja qualquer, andando pelo baixo-centro
(as ruas hoje são tão bem iluminadas que flanar tornou-se impossível)
o poeta veste seus óculos escuros e decide passear pelar Universidade
e ver se encontra quem não tenha sentidos como ele, quem não esteja preocupado
com o futuro da raça.....

O Poeta acende o baseado e se lembra do mais importante:
passa em frente ao estádio e não sabe se o grito que escuta é
ZÊEEEEEEEEEEEEIRO” ou “GAAAAAAAALO”
mas pouco importam os signos, nascer nessa cidade e não ser um ou outro
é como viver exilado – merecidamente,
o poeta repete o mantra: decapitar os que não gostam de futebol,
decapitar os que não gostam de futebol, decapitar os que não gostam de futebol!

E é assim que o Poeta nasce, todas as noites,
da carne macia e mórbida

das pernas da Serra do Curral.

segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Sapoeta II


Parece que estou multiplicando
minhas ideias:
eu acho que estou subsidiando
novas estrelas:
às vezes eu penso, digo e faço
e só faço besteira:
Pareço um doido perdido no espaço
caçando cometas:
quem sabe um morto vagando na rua
a noite inteira:
pareço  a gravata, a cartola e o fraque
na estampa mais feia:
mas sou só um sapo, perdido e danado,
na noite brejeira:
Mereço um canto, num canto do mundo,

só pra brincadeira.

terça-feira, 12 de novembro de 2013

Negaceio para a bailarina.

Negaceio

bailarina,
sina
que ainda
não é
          minha
sina,
nem minha
menina,
nem minha
...
não é
         nem
ainda.
sozinha,
vazia,
queria ser
sina,
mas na
ponta da
               sapatilha
a bailarina,
do cabelo
                 aos pés,
é só
      menina.

segunda-feira, 26 de agosto de 2013

Consideração sobre o Grande Amor.

Se eu reparasse
o Grande Amor
passando na rua,
giraria a cabeça,
olharia sua bunda.

E, assim,
não quero dizer
que o Grande Amor
não seja você.

Era tudo
mentira:
dita, ouvida.
Disso nasceu
a verdade,
mas eu sou cínico
e você duvida.

É nas folhas
do meu caderno
que sou mais
terno,
           nos seus olhos
           me encerro:
           meu caderno,
           seu sorriso,
           um inferno.

A folha é
               minha bolha,
               minha escolha.
E tanto faz se olha,

se não me olha.

domingo, 25 de agosto de 2013

Sapoeta – Metáfora simbolista II



O sapo,
cheio de papo,
reclama do mundo
se diz o vira-lata
dos que vivem no pântano.
Canta sua música
(tão feia, tadinha)
e ninguém se dá com o sapo
de meio-dia a meio-dia.
E é por isso que o sapo canta,
solitário,
sua melodia.

Poeta é todo canário

que nasce pra sapo.